RELATÓRIOS D’O ESPECTADOR ESPANTADO 3049N: HENRIQUE PÊRA
EDGAR PÊRA – Então paizito, lembras-te de qual foi o primeiro filme que viste?
HENRIQUE PÊRA – O primeiro filme que eu vi na minha vida?
EP – Sim
HENRIQUE PÊRA – Creio que foi um ainda no tempo do mudo mas não me lembro do título e foi em Coimbra.
EP – Como é que era a sala?
HENRIQUE PÊRA – A sala era… a sala de um cinema normal com plateia e balcão.
EP – Estava cheio?
HENRIQUE PÊRA – Não me lembro. Tinha menos de 9 anos, que eu saí de Coimbra aos 9 anos.
EP – E qual é o primeiro filme que tens uma memória…que te lembres dele?
HENRIQUE PÊRA – Era um filme com o Wallace Beery acerca do expresso que descarrilava e ele era o maquinista desse comboio.
EP – E o que é que te lembras mais?
HENRIQUE PÊRA – Pouco mais. Sei que ele depois foi julgado por ser o maquinista, mas não me lembro mais.
EP – Quando eras miúdo o que é que te espantava mais nos filmes?
HENRIQUE PÊRA – O que é que me espantava mais?
EP – Sim.
HENRIQUE PÊRA – Era a acção, movimento, porrada…
EP – Quando é que ficavas assim mais deslumbrado?
HENRIQUE PÊRA – Olha as cenas de amor, quando eu era miúdo até virava a cara para o lado. Não gostava nada de ver beijocas.
EP – Porquê?
HENRIQUE PÊRA – Não sei. Naturalmente era porque ainda não sabia amar.
EP – E o que é que ias a dizer?
HENRIQUE PÊRA – E…lapso, lapso de memória…
EP – Estás-me a copiar…
HENRIQUE PÊRA – E lembro-me do tempo do mudo de ouvir falar na Clara Bow. Creio que é mencionada no teu livro não é?
EP – É sim senhora, que tinha umas poses escandalosas.
HENRIQUE PÊRA – Lembro-me também de um filme que tinha o titulo Mata Hari, não sei se era com a Greta Garbo.
EP- Talvez…
HENRIQUE PÊRA – Talvez…
EP – Mas o que é que te deslumbrava mais? Quando é que ficavas mais de boca aberta?
HENRIQUE PÊRA – Com os truques que simulavam as quedas, a porrada, era isso…movimento.
EP – As cenas de acção…
HENRIQUE PÊRA – Sim, sim…as cenas de acção.
EP- E …mas também fazias filmes para os soldados quando foste para Lisboa, pelo que me contaste. Como é que era isso?
HENRIQUE PÊRA – Eu desenhava numa película, desenhava bonequinhos que depois passava numa máquina manual e tinham movimento, isso é que eu me lembro.
EP – Mas era para quem?
HENRIQUE PÊRA – Era para a família.
EP – Mas também no meio do…no quartel.
HENRIQUE PÊRA – Sim era quando eu vivia no quartel.
EP – E os soldados também viam?
HENRIQUE PÊRA – Não, não. Era só a família.
EP – Mas tinha uma história?
HENRIQUE PÊRA – Não. Eram 3 ou 4 cenas e mais nada.
EP – Mas desenhavas na própria película.
HENRIQUE PÊRA – Sim, com tinta da china. Eu julguei que nesta entrevista eu ia ler um texto e não estava preparado. Porque da primeira vez que cá vim, a Cláudia e a Marina estavam a ler e eu julgava que era isso. Para mim era muito mais fácil do que estar aqui a puxar pela cachimónia.
EP – Eh eh… mas olha… Então e quando chegaste à adolescência, havia alguma coisa que tu gostasses mais?
HENRIQUE PÊRA – Quando cheguei à adolescência, íamos para um cinema em Campolide que era o que ficava mais perto do quartel e sentava-me na primeira fila que era a geral, por ser mais baratucho e de vez em quando levava um empurrão para dar lugar a outro e tinha que sair.
EP – Porque não havia lugares marcados.
HENRIQUE PÊRA – E aí é que íamos também no carnaval. Fazíamos saquinhos com milho que eram cozidos à máquina pela minha mãe e creio que pela Zélita, não me lembro. E depois íamos para a tacada ver filmes próprios do carnaval e a atirar os sacos uns aos outros. Era um grande gozo.
EP – O que é isso da tacada?
HENRIQUE PÊRA – Tens de falar mais alto.
EP – O que é que é a tacada? Disseste que iam para a tacada…
HENRIQUE PÊRA – Eram os sacos com milho que se faziam em casa e depois atirávamos os sacos aos outros espectadores. Nós íamos também para o balcão quando era no carnaval e o balcão tinha umas cadeiras laterais e em baixo era a plateia, de forma que atirávamos para o outro lado, para os que lá estavam do outro lado. E houve uma ocasião que a minha mãe matou uma galinha, cortou-lhe o pescoço e levamos o pescoço da galinha para o cinema na altura do carnaval. De forma que atiramos o pescoço da galinha lá para o outro lado e às duas por três houve alguém que retribuí e atirou para o sitio onde estava o meu irmão e ele: ‘É pá! até atiram para aqui cabeças de galinha! (ri-se)
EP – E havia traulitada nesses cinemas depois…
HENRIQUE PÊRA – Não, não.
EP – Que eu lembro-me que em Moscavide no Carnaval andavam à porrada mesmo…Então e quando chegaste à idade adulta o que é que…
HENRIQUE PÊRA – E depois íamos ao…o nosso cinema favorito ou era o Jardim Cinema que já não existe…o Chiado Terraço…também já não existe, ali depois do Camões. E íamos ao Eden, para o 3º balcão que tu fizeste um filme sobre ele, não foi?
EP – Foi, foi. Tinham lá umas salas que tinham até umas caminhas e tudo…uns divãs e uns lavabos, umas salas privadas.
HENRIQUE PÊRA – Ah sim? Isso não era conhecido do público.
EP – Não não, eu é que andei lá a ver quando estava a filmar A Cidade de Cassiano… Então e quando passaste à idade adulta o que é que gostavas de ver?
HENRIQUE PÊRA – Futebol. Jogos do sporting. (ri-se)
EP – Não mas no cinema.
HENRIQUE PÊRA – No cinema?
EP – Sim, no cinema o que é que vias?
HENRIQUE PÊRA – Gostava dos filmes policiais. Policiais e que metessem julgamentos, tribunais…era isso que eu gostava.
EP – Musicais não gostavas…
HENRIQUE PÊRA – Musicais também gostava, gostava. Dos filmes do Gene Kelly que era um bom dançarino.
EP – Isso não há dúvida.
HENRIQUE PÊRA – Ainda me lembro do filme dele, não sei se era Serenata à Chuva…
EP – Era.
HENRIQUE PÊRA – Era? Também gostava.
EDGAR PÊRA – E a estória que me contaste dos espectadores portugueses do Casablanca.
HENRIQUE PÊRA – Julgo que foi em 1940 e qualquer coisa. A estreia do filme Casablanca no cinema Politeama e lembro-me que fui para o segundo balcão, que eram os lugares habituais de quando eu ia, porque as posses não eram muitas. Fui com a tua mãezita lá para cima assistir ao filme. Não sei se a Tia Zélita também nos acompanhou, não tenho ideia. Sei que vimos o filme com muito agrado e a parte da Marselhesa é que nos entusiasmou mais.
EP – E o que é que aconteceu?
HENRIQUE PÊRA – A cena que realmente me entusiasmou mais, e toda a assistência que se levantava e punha-se de pé a aplaudir, era aquela em que os nazis estavam a cantar aquelas canções guerreiras e depois os que se opunham ao nazismo começaram a cantar a Marselhesa, então aí foi o fim. Foi realmente uma cena muito bonita que nos empolgou. As pessoas levantaram-se e aplaudiram. E também que cantaram o hino.
EP – Por ser um hino à liberdade?
HENRIQUE PÊRA – Era o hino da liberdade. Foi uma grande jornada de propaganda anti-nazi.
EP – E isso tinha importância cá em Portugal porque ainda vivíamos no fascismo…
HENRIQUE PÊRA – Exactamente, ainda não tinha ocorrido o 25 de Abril, por isso foi visto com muito agrado. E tinha sempre as lotações esgotadas.
EP – E depois do 25 de Abril, que filmes vias?
HENRIQUE PÊRA – Depois do 25 de Abril passamos a ver os filmes que antigamente eram proibidos. Principalmente pornográficos. (ri-se muito)
EP (rindo) – E o que é que viste? Lembras-te assim de algum filme que tenhas visto a seguir ao 25 de Abril assim… que fosse mais extraordinário?
HENRIQUE PÊRA – Eu creio que vi um que era O Último Tango em Paris…era com…
EP – O Marlon Brando.
HENRIQUE PÊRA – Marlon Brando. Exacto
EP – Viste esse?
HENRIQUE PÊRA – Sim sim, ainda foi…não sei se foi no Eden. Parece-me que foi no Eden… Estás a puxar muito pela minha tola…
EP – Ah pois, mas faz-te bem.
HENRIQUE PÊRA – E eu não trouxe nenhuma cábula.
EP – Para a próxima trazes uma cábula. Mas também não deves ter diários dessa altura…
HENRIQUE PÊRA – Ah pois não…
EP – Nem bilhetes de cinema…não guardavas os bilhetes de cinema pois não?
HENRIQUE PÊRA – Também não… Ontem fiquei sem o meu telemóvel a funcionar como te contei mas já está… já está em ordem.
EP – Então e filmes que tenhas visto connosco quando éramos miúdos ? Lembras-te de alguma coisa?
HENRIQUE PÊRA – Não tenho ideia. A memória já…
EP – Eu lembro-me …acho que o primeiro filme que vi…convosco claro, foi a Mary Poppins.
HENRIQUE PÊRA – Ah.
EP – Lembras-te?
HENRIQUE PÊRA – Lembro. Gostei… e gostei muito desse filme e a Zélita também… já o viu talvez uma centena de vezes.
EP – Há quanto tempo é que já não vais ao cinema?
HENRIQUE PÊRA – Não foi há muito tempo.
EP – Foste ver o quê?
HENRIQUE PÊRA – Creio que foi no Amoreiras… e fui com a Zélita mas não me lembro que filme é que fui ver… Estas entrevistas a puxar pela memória são um fracasso. Está´a puxar pela minha tola e eu não trouxe uma cábula.
EP (sorrindo) – Não… já disseste umas coisas boas!
… Há aí um telefone a tocar….