CINE-DIÁRIO DO ESPECTADOR ESPANTADO 4783MF-2014 – FOTOS 3D ANAGLÍFICAS
Maximino Fernandes é responsável pela projecção de filmes na Cinemateca Portuguesa.
EDGAR PÊRA – Então queria começar por lhe perguntar se se lembra qual foi o seu primeiro filme?
MAXIMINO FERNANDES – Não, não me lembro, não. Não me lembro. Tantos, estou na dúvida se não foi o Barabbas, em que entra o Anthony Quinn. Se calhar digo eu, não me lembro, sinceramente. Eu era miúdo quando vi aquilo…
EP – Tem uma memória desse filme como o primeiro que viu?
MAXIMINO FERNANDES – Não como o primeiro mas um dos primeiros quando era miúdo.
EP – E que tipo de emoções é que esses filmes espoletavam?
MAXIMINO FERNANDES – Eh pá… aquilo é um filme Bíblico, não me recordo. Não me recordo exactamente porque isso já foi há muito ano. Já são muitos anos, como diria o outro, a assar frangos. Então, para memorizar o conteúdo do filme é complicado para mim.
EP – Então o que lhe deslumbrava mais no cinema, quando era criança?
MAXIMINO FERNANDES – O que me deslumbrava mais… eu comecei nestas andanças do cinema tinha 9 anitos;, comecei a vender rebuçados e amendoins ao intervalo, não tinha idade para estar lá dentro. Depois o que me deslumbrava muito, e de que maneira, era que eu ia para debaixo do balcão assistir aos filmes às escondidas; quando olhava via a projecção a sair de lá do buraco para o ecrã – e isso era uma das coisas que me deslumbrava, estava sempre a olhar para lá, depois daí para a cabine ajudar o homenzito. E cá estou eu a projectar filmes há mais de 50 anos.
EP – E desses filmes que via que tipo de cenas é que gostava mais?
MAXIMINO FERNANDES – A pancadaria! Espadachins, coboiada, naquele tempo era assim. Era o rapaz, a ver se o rapaz não morria ao fim e a rapariga… Nesse tempo era basicamente o meu gosto e da maior parte da juventude. Espadachins, espadeirada, coboiada e comédia também, alguma. Dramas nunca fui muito amigo de dramas naquela época. Hoje estou mais sensível.
EP – O que é que hoje lhe espanta no cinema? Na sua actividade e fora dela?
MAXIMINO FERNANDES – O que é que me espanta? Eu não sei bem o que é que me espanta. Está-me a perguntar sobre o Cinema em si ou sobre as alterações que entretanto têm havido?
EP – Tudo.
MAXIMINO FERNANDES – O que é que eu hei-de dizer sobre isto? Espanta-me que nada está igual. Atrás de si, você hoje está a fazer um filme que há uma série de anos era impensável para si fazê-lo. Isso também me espanta.
EP – Está a falar desta câmara 3D?
MAXIMINO FERNANDES – Estou a falar do 3D, neste caso.
EP – Já projetou cá filmes em 3D?
MAXIMINO FERNANDES – Ali naquela sala pequena passou uma coisinha em 3D mas por acaso nesse dia não estava cá. Mas já passei antes de vir do (cinema) comercial para cá para a Cinemateca, passei alguns em 3D, não muitos 2,3, pelo menos.
EP – Lembra-se de algum filme 3D que tenha projectado?
MAXIMINO FERNANDES – Lembro-me de um filme que passei que era, era a imagem a sair, ou essa a ilusão de que a imagem saía para fora do ecrã. É basicamente isso que me recordo, agora o conteúdo dos filmes já não me lembro.
EP – Já deve ter assistido a muita coisa nestas salas…
MAXIMINO FERNANDES – Imagine…aqui nesta sala estão todos os dias a acontecer coisas novas, todos os dias são diferentes. Há coisas de que gosto muito, outras de que nem por isso, outras gosto menos mas não quer dizer que não gosto de todo. Mas que me espantasse assim… nada me espanta, já estou como o outro, tenho 60 anos, ando nisto desde miúdo. Há uns que gosto mais e outros gosto menos. Agora se me perguntar, voltando ao princípio das suas perguntas, há dois filmes – que estou farto de dizer em algumas entrevistas que me têm feito – esses sim, marcaram-me e dão que pensar e que são eles As Vinhas da Ira e Como Era Verde o Meu Vale. São duas obras primas que esses sim marcaram-me e não me esqueço deles para além de outros mas esses principalmente. Bem, estou a falar do (John) Ford , do Ford gosto de tudo. Como gosto de tudo de outras pessoas. Mas aqueles dois filmes… Está-me a perguntar o que é que me marcou nos filmes? As Vinhas da Ira é uma coisa impressionante, a sobrevivência dentro do mesmo país, “fronteiras” (entre aspas) para passares tens que ter as dificuldades todas – para ires apanhar laranjas…- a sobrevivência, a miséria. E depois o outro, Como era verde o meu vale é uma lição de vida extraordinária, não tenho palavras para descrever a beleza daquilo.
EP – Então no fundo o que aprecia mais é a relação do cinema com a realidade do quotidiano.
MAXIMINO FERNANDES – Sim, sim.
EP – E fora daqui, vai ao cinema?
MAXIMINO FERNANDES – Eh pá…, não tenho tempo e agora vamos entrar nas novas tecnologias. Eu tenho que te fazer uma confissão, embora não tenha nada contra isso, eu não gosto daquilo. Tenho a possibilidade de ir ver – não tenho nada contra o Cinema, nem contra os DCPs, contra o Cinema (digital) muito menos… que é o meu ganha pão – mas não estou motivado para ir assistir a filmes aí fora. Eu só vejo filmes na Cinemateca, vejo algum Cinema Português quando passa nos TV Cine, no Canal 2, de resto não vejo – português e francês basicamente – de resto não vejo Cinema nem na televisão. Só vejo aqui na Cinemateca, quando posso, que apesar de trabalhar com eles nem sempre os posso ver. Tenho que estar a olhar para eles mas não os posso ver.
EP – Mas vê os filmes sempre ali detrás, na cabine…
MAXIMINO FERNANDES – Sim, sempre. Nem me dava jeito estar aqui a ver um filme. Já tentei e não consigo. Começa a doer aqui esta parte abdominal. É uma questão de…agora ia ver um filme à sala, a ver como é, já tentei, ao fim de 5 minutos estou em pulgas, tenho que me ir embora. São muitos anos atrás do buraco, sabe? Deve ser isso. Portanto, não me dá jeito ir aqui para a sala. Eu fui ver alguns filmitos, eu tenho uma miúda com 18 anos, fui uma ou outra vez mas já há muitos anos antes de acabarem com o cinema e implantarem então os DCPs – o Cinema Digital.
EP – Quando acabaram com a película para si foi o fim de uma era. Quando desapareceu a película para si desapareceu o Cinema?
MAXIMINO FERNANDES – Eh pá, pois. Não desapareceu o Cinema, o Cinema está aí. Mas para mim o Cinema é a película, é 35 principalmente, 35mm, quem me tira o 35mm tira-me tudo. agora, vem um ficheiro carregado como vocês me passaram aqui um dia destes, eu acho muita graça aquilo mas não é a mesma coisa. Não é a mesma coisa.
EP – Não é mesmo a mesma coisa, realmente…
MAXIMINO FERNANDES – Pois, e isso também se reflecte. Isso vai-se reflectir também nos próximos realizadores, esta juventude que faz coisas hoje engraçadas e interessantes com muitas dificuldades. No futuro vão fazer coisas mas não sabem como é que era o Cinema na realidade. Eu creio, o Sr. é que é o mestre, filmar em película não tem nada a ver com apontar uma câmara para ali e fazer uma coisa em digital. Tem de ser ter os conhecimentos e essas coisas todas, mais uma vez, eu disso não percebo nada mas acho que não é a mesma coisa.
EP – Certo. Nunca mais vai ser a mesma coisa.
MAXIMINO FERNANDES – E há-de haver uma diferença abissal. Fotografia, tem tudo a ver. A câmara já ajuda em muita coisa, o digital. Se filmar às escuras de certeza que ia ter uma boa imagem, de certeza que vai ter uma boa imagem. E se fosse com o 35 mm a coisa se calhar não era bem assim, pois não?
EP – O 3D também precisa de muita luz, come muita luz. (…) Tem de se filmar com mais luz até do que o 35.
Então e relativamente aos espectadores aqui nesta sala, nesta, nas outras, tem assistido aqui a alguns episódios que possa contar?
MAXIMINO FERNANDES – Não. Aqui na Cinemateca não se passam coisas estranhas. Houve aí um episódio fora com dois espectadores, que eu por acaso vinha a passar na altura e entrevi, um estava a tentar agredir outro.
EP – Que filme é que era? Lembra-se?
MAXIMINO FERNANDES – Não me lembro. Havia ali uma apresentação e o Sr. não gostava porque achava que aquilo não fazia parte do Cinema. Pensava que estava no Cinema Comercial e que estas coisas de falar no princípio e no fim eram uma chatice e tal. Então punha-se aos gritos “começa o filme!!!!”. Mas não tenho assim muitos episódios para contar. Havia aqui um Sr. nesta época das constipações, se alguém espirrasse ele mandava-o calar. De resto, felizmente o ambiente é pacífico.
EP – Já vi aqui pessoas a ver filmes mudos e a ouvir um relato de futebol.
MAXIMINO FERNANDES – Inacreditável, isso é uma falta de respeito. Ah pois era! Havia cá um senhor que por acaso não vejo há muito tempo, não sei se já faleceu ou não, que vinha para cá e trazia uns “fones” nas orelhas e ouvia relatos, sim. Haviam pessoas que se queixavam e o meu colega que estava aqui na porta na altura ia pedir ao Sr. para desligar aquilo. Se calhar era o mesmo. Porque ele como tinha os fones nas orelhas, pensava que os outros que estavam ao lado não ouviam e ouviam. Isso é uma pouca vergonha….
EP – Mas antes de estar na Cinemateca esteve num Cinema Comercial…
MAXIMINO FERNANDES – Eh pá, toda a vida….
EP – E dessas salas? Tem algumas histórias com espectadores?
MAXIMINO FERNANDES – Histórias, histórias, não. Porque é assim, isto é uma coisa particular mas que vou divulgá-la… é uma coisa que eu também transmito aos colegas: o respeito tem que ser absoluto pelos espectadores. Mas se nos metermos na cabine, nós nem os vemos nem os ouvimos e trabalhamos da mesma maneira que para um ou que para mil. Isto para dizer o que “Ah! Estão lá dois ou três espectadores, então podemos estar mais à vontade” não; tem que se estar com a mesma atenção e com o mesmo cuidado como se estivessem mil. Se houvesse aqui um pequeno episódio em princípio, só se fosse uma coisita assim que eu desse por ela ou alguém me avisasse, porque de contrário não dou por nada disso de se passar aqui. O ambiente é pacífico, felizmente.
EP – Então não tem assim nenhuma história especial?
MAXIMINO FERNANDES – Não, não (…). Eu trabalho mais daquele lado, mais não – principalmente e sempre-, de modo que às vezes até pode ser que aconteça por aqui um episódiozito ou outro menos ou mais engraçado, digo eu, mas não, não me apercebo porque estou lá sempre em cima praticamente. Já nos outros cinemas era a mesma coisa, o trabalho fi-lo sempre na cabine não estava em contacto directo.
EP – Então e não se sente à vontade de estar aqui sentado, tem medo de estar a acontecer alguma coisa e que pode não estar lá para intervir?
MAXIMINO FERNANDES – Também. Mas não é que as pessoas que lá estão não intervenham, quer dizer, as pessoas que estão ali têm todas as condições para fazer o trabalho que estão a fazer. Não sei… é o hábito, são muitos anos atrás do vidro, ali ao lado da máquina, ao perto dela, o barulho da máquina é diferente… De modo que habituei-me de tal maneira que não me dá jeito estar dentro de uma sala. Já tentei aqui e ao fim de cinco minutos, estou ansioso e vou me embora. Vou-me embora porque posso ir lá para cima. Aqui o meu trabalho, nem sempre posso, é como disse há pouco se eu estiver ao lado de uma máquina tenho que estar sempre a olhar para o filme. Mas há alturas que a gente está a olhar mas não o está a ver…porque há o perigo de chegar a altura de mudar para a outra e… eu ia tendo aqui ataques cardíacos quando vim para cá. Porque estava habituado a montar o filme num prato, um prato grande e tal, depois aquilo só parava ao intervalo e ao fim… e parava onde eu queria porque aquilo era automático tinha lá o pratinho e o sensor.
Quando vim para aqui mudava-se rolo a rolo, embora eu já tivesse essa experiência, ai Jesus! Até me dava um ataque porque às vezes por questões de minutos, três/quatro minutos, eu podia dar barraca porque estava a ver o filme, então fui-me desabituando gradualmente e só vejo quando realmente posso. Hoje como sou o responsável (pelas projecções da Cinemateca) tenho um bocadinho mais de disponibilidade e posso meter-me a vigiar e a ver um bocado o filme com mais atenção porque está outro à máquina. Mas se eu estiver à máquina, a olhar para lá sempre, mas ver com aquela intenção de ver, porque eu sou daquelas pessoas que tenho – isto é um defeito ou ignorância, não sei – eu quando estou a ver um filme passo para lá, dentro, abstraio-me e abstraio-me se me interessa das pessoas e de quem me rodeia…isso é um perigo para quem está a fazer uma projecção de um filme, está a perceber? É a única maneira que eu tenho, dentro da minha ignorância – que é mesmo assim, de poder avaliar um filme, é entrar – abstrair-me e entrar, passar para lá.
(aponta para o ecrã) Olha era este que eu estava a falar, este actor…
EP – Nuno Melo.
MAXIMINO FERNANDES – Não me lembrava do Melo…
EP – Então está habituado a ver os filmes com o barulho da máquina?
MAXIMINO FERNANDES – Pois, isso é fundamental. E tenho-o de tal maneira aqui, nas orelhas, que se alguma começa a querer pisar o risco eu levanto-me logo e vou ao pé dela.
EP – Só pelo ruído?
MAXIMINO FERNANDES – Sim, só pelo ruído. Faz parte da coisa. A gente ao fim de um certo tempo, às vezes estou em casa – agora nem tanto -, chego a estar em casa e ainda oiço os motores a trabalhar ao pé dos ouvidos…..
EP – Ainda ouve esse som dentro da cabeça?
MAXIMINO FERNANDES – É, é…
EP – Então, está feito, obrigadíssimo.
© edgar pêra produção bando à parte na foto: Valdemar Santos em O Espectador Espantado