CINE-DIÁRIOS D’O ESPECTADOR ESPANTADO ‘0382913B
EDGAR PÊRA – Então, já te lembraste qual foi o primeiro filme que viste?
FÁTIMA CHINITA – Lembrar… lembrar, não me lembro. Mas deve ter sido um da Disney qualquer e há um que me marcou porque…foi um bocado traumático… foi o Bambi. Não me lembro lá muito bem dos outros para falar verdade mas assim filmes já não animados, deve ter sido algum da Warner Brothers porque havia uns ciclos que passavam na televisão, e então eu vi basicamente aqueles filmes todos de gangsters, os dramas com Bette Davis, até mesmo os Tarzans…imensas coisas dessas e vi muitos filmes mudos que passavam, e não sei dizer exactamente qual foi o primeiro mas foi dentro daquela onda… também via muitos musicais enfim, tudo o que passava na televisão eu via, mesmo muito cedo comecei a ver…logo aos 6 anos de idade filmes desses e adorava. Os meus pais queriam passear ao fim de semana e eu, obstinadamente queria ficar em casa agarrada à televisão a ver filmes, por isso não sei exactamente precisar…
EP – Lembras-te da primeira experiência numa sala de cinema?
FÁTIMA CHINITA – Deve ter sido a Música do Coração, que depois também voltei a ver mais tarde, mas não terá sido porventura aquilo que mais me marcou. Houve um filme que eu vi e que me marcou bastante mas não é considerado um filme intelectual, basicamente é um filme mainstream…foi o Ben Hur pelo aparato portanto…
Gostava da sala pelo seu tamanho e via filmes que se coadunassem com isso, e depois quando surgiram os western spaghetti eu ia ver os Leone’s todos, adorava aquilo… gosto muito disso. E via outras coisas evidentemente.
Acho que o primeiro filme para adultos que vi numa sala, curiosamente, não seria nada recomendável como produto artístico mas foi um 007, que o meu pai me levou a ver porque basicamente queria vê-lo e então achou oportuno arranjar uma desculpa e fomos ver aquilo, e eu adorei.
EP – Olha, o que é que te espantava nessa altura, no cinema?
FÁTIMA CHINITA – Quer dizer, naquela altura as salas eram efectivamente salas de cinema e eu adorava ir pela experiência, um grande ecrã… Essencialmente era isso porque a diferença entre ver os filmes em casa, na televisão, e eram excelentes filmes ou ver outros que não eram tão bons, em sala tinha essencialmente a ver com as dimensões do ecrã, com a dimensão da própria sala. Era isso, era a sala. Era mesmo a sala.
EP – Então o que te espantava na altura era o fenómeno em si da projecção…..
FÁTIMA CHINITA – Sim.
EP – E diz-me uma coisa, quando é que as tuas primeiras experiências de medo no cinema?
FÁTIMA CHINITA – Eu fugia de certos géneros portanto à partida filmes de terror e outras coisas desse género, eu não ia ver. Senti medo naquela primeira experiência do 007 que vi mas por outro lado gostei…verdadeiramente não me recordo muito de medo, para falar verdade. No cinema não.
EP – E quando é que despertaste para o cinema enquanto linguagem? Com que filmes?
FÁTIMA CHINITA – Foi com o cinema clássico americano visto em casa todo na televisão, ou seja, comecei a gostar muito e aos 16 anos, portanto no liceu, tinha a certeza que era isso que eu queria estudar posteriormente. Acabei por não seguir directamente, por questões familiares decidi fazer a vontade aos meus pais e arranjar um outro curso, enfim, que eles entendiam que ser mais sólido. Eles entendiam assim, não eu… e acabei depois mais tarde por ingressar na Escola de Cinema e, mas na adolescência já tinha a certeza que queria estudar cinema.
EP – Eu ainda fui até ao 4º ano de psicologia, mas já estava a fazer os dois cursos ao mesmo tempo e desisti…
FÁTIMA CHINITA – Eu fui até ao último de literatura e meio mestrado, mas efectivamente não consegui deixar de pensar nisto, mesmo….
EP – Olha e diz-me uma coisa. Para ti existe uma entidade chamada o meta-espectador?
FÁTIMA CHINITA – Completamente.
EP – E podes-me dar um exemplo?
FÁTIMA CHINITA – Partido do principio que eu acredito no meta-cinema como sendo alguma coisa em que os filmes versam a sua própria problemática e portanto em que os realizadores estão a questionar aspectos relacionados com o próprio cinema enquanto linguagem, temática, etc… e que portanto têm um discurso autoral sobre o cinema. Eu acredito que existe um espectador capaz de os compreender e capaz de aceitar e entender o discurso que eles querem formular, esses são os meta-espectadores. Também acredito concomitantemente com isso que os espectadores são capazes eles próprios de formular o seu próprio discurso, não têm necessariamente de ser cinéfilos para o fazer porque consumir muito cinema não é necessariamente percebê-lo, mas eventualmente se o cinema nos faz reflectir sobre o próprio cinema em termos de concepção, então acredito que esse espectador é um meta-espectador, sim.
EP – Mas também não podemos dizer que um meta-espectador, dentro dessa tua lógica de meta-cinema, é alguém que também reflecte constantemente, durante o visionamento e depois do visionamento, sobre a sua própria condição de espectador…quer dizer, tem uma espécie de dupla consciência?
FÁTIMA CHINITA – Acredito que sim. Acredito que ao contrário que é advogado por certos teóricos da segunda vaga semiológica, Christian Metz, etc. se estivéssemos apenas presos à história, não teríamos consciência daquele outro aspecto que é a dimensão da sala que é…outras questões que não têm só directamente a ver com o filme e com a narrativa do filme… portanto eu creio que um meta-espectador é uma pessoa que se sente espectadora enquanto visiona o filme e que pensa sobre o filme numa perspectiva, enfim, eventualmente narrativa se for um filme de ficção, mas também cinematográfica em geral. Eu creio que é mais qualquer coisa, mesmo que não tenhamos consciência exactamente do que é, eu creio que um meta-espectador é essa pessoa que é algo mais.
EP – E então face, por exemplo, a um conceito do espectador fetichista do Barthes que é atraído pela luz do projector e por tudo o que rodeia a projecção…enfim por tudo aquilo que aparentemente é exterior ao filme. O que é que tu achas do meta-espectador? Como é que se relaciona com esse espectador fetichista, apaixonado pela própria sala?
FÁTIMA CHINITA – Mas atenção que a sala não é só uma sala, é uma experiência cinematográfica e a experiência cinematográfica não tem só a ver com efeitos de luz ou efeitos de som ou três dimensões ou outra coisa qualquer, porque então em espectáculos musicais ou outros, podemos ter exactamente os mesmos timbres sensoriais e não estar a ver cinema, ou seja, Barthes pode ter dito isso mas disse-o há bastante tempo. Hoje em dia existem estudos sobre os aspectos sensoriais relacionados com os new media essencialmente. Aquilo que me parece que é importante no meta-espectador é uma percepção intuitiva da experiência cinematográfica na sala e simultaneamente da natureza do filme, visto em sala. E parece que contra mim falo porque obviamente, tendo começado por dizer que vi todo o cinema clássico americano na televisão e adorei então dá a sensação que eu poderei não ser um meta-espectador, mas por acaso até creio que sou.
Mas é uma consciência diferente, é um ímpeto diferente e o fetichismo que implica uma adesão à técnica, eventualmente aplicaria hoje em dia ir ver filmes em três dimensões porque são melhores que os outros. E eu completamente renego essa posição, não me parece que a técnica por si só valide a experiência e faça com que o espectador possa reflectir melhor sobre aquilo que o envolve.
EP – Eu acho que todos os materiais têm um período de descoberta, não necessariamente de imediato, mas passado uns anos em que o fenómeno da atracção propriamente dita já serenou um pouco, mas, do meu ponto de vista de criador, acho que há uma altura específica para se trabalhar, com os materiais e portanto o 3D para mim é a oportunidade de criar uma experiência que é acima de tudo traduzível na sala de cinema, que é como quando apareceu o Cinemascope, quer dizer não é que se façam filmes melhores por causa disso mas o espectador tem uma experiência nova que não é de menosprezar.
FÁTIMA CHINITA – Eu percebo, mas há certos filmes que são feitos para certos meios e em que faz sentido utilizar determinadas técnicas, e aquilo que eu estou a dizer é que essa experiência fetichista que eu também tenho, é valorizada em certos objectos e não noutros, ou seja, não vou ver um filme por ser 3D, vou ver um filme em que o 3D seja necessário e que faça parte da dramaturgia fílmica.
EP – Achas que esse teu meta-espectador…podíamos considerar uma espécie de espectador cine-alfabetizado?
FÁTIMA CHINITA – Pois mas a questão aí é que já estamos a começar a aproximar-nos da cinefilia. E a cinefilia, pelo menos na sua versão original em Paris nos anos 50, implicava espectadores que viam tudo e normalmente na Cinemateca francesa, portanto viam filmes com determinadas características. E eram profundos conhecedores porque liam muitas coisas e também escreviam críticas, portanto a parte da escrita mesmo que eles próprios não fossem críticos cinematográficos, fazia parte da experiência global e eu não creio que para se ser meta-espectador se tenha necessariamente de ser cinéfilo com esta conotação histórica. Por outro lado, ser cinéfilo numa conotação completamente corriqueira e quotidiana que é gostar muito de filmes e ver tudo, das coisas mais interessantes às maiores porcarias também eventualmente não nos dá nenhuma percepção e consciência daquilo que nós somos, portanto creio que será um misto das duas coisas: da quantidade de visionamentos e daquilo que nós retiramos dessa experiência de visionamento. Se nos faz reflectir em termos pessoais sobre os filmes, não necessariamente como uma comunidade que tem as mesmas opiniões que nós e para quem escrevemos coisas, então creio que podemos ser considerados meta-espectadores, tendo dito isto há cinéfilos que não são meta-espectadores e há pessoas que vêm tudo e mais alguma coisa e que também não são.
EP – Então para ti, retomando esta ideia de sala, o que é que é mais cinema? um jogo de futebol projectado numa sala de cinema? ou o Citizen Kane num telemóvel?
FÁTIMA CHINITA (sorrindo)- Tricky question. Não te sei responder porque obviamente em termos intelectuais eu sou inclinada a dizer o Citizen Kane num telemóvel, mas o telemóvel é um ecrã tão pequeno que retira grande parte do aspecto sensorial e fetichista que também faz parte da experiência importante, mas por outro lado ver um jogo de futebol numa sala não me estimula nada, ou seja, não é a sala que nesse caso faz a experiência.
EP – Ou seja, há uma coisa mais importante que é o filme em si? Para ti?
FÁTIMA CHINITA – Sim, eu acho que toda a experiência está subjugada ao filme, independentemente da qualidade que ele tenha. Quanto mais tiver, melhor mas sim, o filme é um ponto de partida. Não se pode ser meta-espectador só pelos aspectos técnicos, porque estamos a ver filmes não é?
EP – Eu digo isto porque fala-se muito na morte do cinema e muitas vezes o que está subentendido é que é a morte da sala de cinema e não propriamente do cinema.
FÁTIMA CHINITA – Da sala de cinema e da experiência cinéfila de consumo continuado, etc mas isso para mim é uma falsa questão, ou seja, antes de 1895 e da famosa projecção dos Lumière já havia evidentemente outras projecções cinematográficas, nomeadamente os irmãos Skladanowsky tinham feito a mesma coisa na Alemanha e havia os filmes desde 1893 do Edison, portanto quer dizer, não podemos desconsiderar essas situações e dizer que aquilo não era cinema não é… É evidente que o facto daquela primeira exibição pública dos Lumière ter tido tanto êxito veio de certa maneira a cristalizar aquilo como uma experiência cinematográfica, mas eu considero que já havia outras antes e que há outras depois, portanto… É evidente que a sala será sempre, para mim enquanto espectadora, o local privilegiado… mas agora se calhar vou fazer uma confissão terrível: eu vejo muitos filmes e não os vejo todos em cinema, em sala portanto isso não me retira o prazer de os ver nem a importância daquilo que vejo. É evidente que usufruo mais e gosto mais, e há toda uma outra dimensão adicional quando os vejo em sala, mas não me parece que a sala seja a única hipótese de ver cinema e cada vez mais temos de considerar outras situações… que também são elas próprias muito tecnológicas e muito fetichistas.
EP – Sim, eu acho que é uma coisa fundamental quando se passa da sala de cinema para outros meios, é a capacidade de manipulação que o espectador tem das próprias imagens, ou seja, liberta-se da ditadura do projeccionista. Sinto que há uma libertação.
FÁTIMA CHINITA – Há cinema interactivo, não há muito, porque justamente é difícil de projectar produtos desse género em sala, mas em DVD em casa podes ver filmes interactivos em que escolhes o teu percurso, portanto clicas numa tecla e vais para outro sítio da história e portanto nunca vês duas vezes o mesmo filme. Isso em sala não é possível, ou então só lá pode estar uma pessoa.
EP – A controlar…. Lembro-me de, numa sala de cinema, ver um miúdo dizer assim, enquanto estava a ver um filme : “ó mãe não podemos mudar de canal?”. Já estava farto daquele filme…
Mas eu acho que o espectador interactivo, sobretudo a partir do momento em que passou a haver o DVD é todo aquele que faz uma alteração na montagem, portanto basta saltar de um capítulo para outro, já há uma interactividade, o filme já se apresenta de forma diferente da que foi pensada.
Depois há outra questão… voltando ao início do cinema …É evidente que podemos pôr o início do cinema nas cavernas, como alguns fazem, desde as cavernas que existem projecções de imagens… Mas não achas que se pusermos o ponto Zero no kinetoscópio de Edison em vez do no cinematógrafo dos Lumière, portanto se pusermos a tónica no filme, (no caso do kinetoscópio trata-se de um filme de consumo individual) e não na projecção desse mesmo filme, não será muito mais fácil resolver a questão se é mais cinema o Citizen Kane num telemóvel ou o jogo de futebol na sala … Exactamente porque o centro da questão está no filme e não na sala, na forma como é exibido… O que é que tu achas dessa referência do kinetoscópio enquanto ponto zero do cinema?
FÁTIMA CHINITA – Eu acho uma boa referência porque se por um lado a partilha da sala com outras pessoas pode em determinados momentos ser positiva, porque existe digamos assim uma partilha de emoções ou o que quer que seja, por outro lado é muito incomodativo quando há pessoas ao lado a comer pipocas e a fazer outras coisas. Nessas alturas honestamente mais vale estar sozinho e portanto eu não tenho nada contra o cinema que se vê sozinho. Acho aliás que é um acto extraordinário porque qualquer pessoa que queira estudar um filme e que o queira ver com atenção terá de o fazer sozinho. A questão para mim põe-se apenas na dimensão do ecrã do telemóvel, não no visionamento solitário que esse eu aprecio, com características diferentes obviamente do visionamento em sala, mas aprecio. A questão é mesmo só o tamanho do ecrã. O kinetoscópio não era apesar de tudo um ecrã tão pequeno, não sendo também especialmente muito grande, mas aí porque tinhas de colocar o olho num determinado visor havia uma experiência muito mais intima com o filme do que aquilo que acontece com um telemóvel, que apesar de tudo está na mão e estás a ver a uma certa distância não é…
EP – Sim, o kinetoscópio estará mais perto do capacete da realidade virtual.
FÁTIMA CHINITA – Por exemplo…
EP – Mas a tónica continua a ser no filme…. De qualquer forma o que eu sinto é que a experiência da sala também pode ser um acto de consumo individual… uma das experiências mais incríveis que tive numa sala de cinema comercial foi ver um filme à uma da tarde e eu o único espectador.
FÁTIMA CHINITA – Isso é muito estranho…
EP – Foi no cinema Terminal, na estação do Rossio…era um filme protagonizado pelo Peter Weller (e pelo Sam Elliot – “Shakedwown” de James Glickenhaus, 1988)
Senti que possuí o filme por completo. Parecia que aquele filme era só meu. Era todo meu, existia apenas por minha causa. Não sei se o filme era bom ou mau, mas foi a mais incrível experiência de visionamento de um filme numa sala.
FÁTIMA CHINITA – Eu também vi um assim inteiramente comercial e era eu, outra pessoa que tinha ido comigo mais três, numa sala enorme que era o antigo Éden, portanto estás a ver como é estranho e lembra-me mais do filme por essa razão do que precisamente pela história ou outros aspectos.
Tens razão, é extraordinário.
EP- Para mim foi uma experiência espantosa….
Olha… e o que é que te levou a fazer uma tese sobre o meta-cinema?
FÁTIMA CHINITA – Foi um bocado à semelhança daquilo que acontece com certos realizadores, que se questionam a eles próprios porque é que gostam de cinema, e depois transportam essas suas dúvidas para dentro dos filmes. Eu também gostava de saber porque é que gosto de cinema, dado que até agora não consegui encontrar nenhuma explicação válida para isso e então a maneira que eu tive de eventualmente pensar mais sobre isto foi fazer leituras específicas e tentar, a nível teórico, tentar compreender o que é que me levou enquanto espectadora a gostar tanto de cinema e inclusive dizer que precisava de estudar cinema, que ver só não chegava. E devo dizer que até hoje ainda não encontrei a resposta. Talvez ela não exista sequer, mas foi um bocado por aí…
EP – O que é que tu vês em comum naqueles três realizadores que tu escolheste para estudar…Cocteau, o Buñuel e o Lynch?
FÁTIMA CHINITA – Aqueles que eu tinha pensado inicialmente fazer para a tese de doutoramento era o David Lynch, Jean Cocteau e era o Orson Wells, porque eu pretendia triangular por um lado o lado narrativo do Orson Wells e a sua tradição norte-americana com a abstracção alegórica do Jean Cocteau e depois ver de que maneira é que isso confluía no David Lynch, nomeadamente no seu último filme: o Inland Empire, mas acabei por não…enfim por razões de tempo e outros…não abordar exactamente a tese nessa perspectiva… a tese chama-se “Do meta-cinema como forma de enunciação autoral”. Portanto, a temática contínua lá, apenas corporizei menos nos cineastas e acabou por ser um pouco mais teórico do que aquilo que eu tinha inicialmente previsto, embora tenha feito de facto muita pesquisa sobre estas três individualidades e aquilo que me fez escolher estes três foram várias razões: a primeira porque eles eram na minha perspectiva meta-cinematográficos todos, importantes todos e que tinham marcado uma época dentro de um cinema norte-americano, por um lado o Orson Wells e dentro de um cinema europeu, por outro lado o Jean Cocteau e de que maneira é que eles podiam ter contribuído alguma coisa para aquilo que o David Lynch eventualmente teria sido…porque apesar de o Lynch não se considerar cinéfilo e dizer: ‘eu quase não vi nenhuns filmes’, que é sempre questionável porque ele é um poseur e portanto o seu discurso é muito elaborado. Eu sinto que existem componentes destas, duas vertentes no seu cinema. Foi um bocado por essa razão e portanto isto é dizer que os três têm em comum uma procura incessante daquilo que são as bases do cinema, e embora o façam de modo mais directo como o Cocteau ou o Lynch, também o podem fazer de uma forma mais relacionada com o cinema da altura, como o Orson Welles… mas fazem-no e isso para mim era importante.
EP – Tu achas que fora da própria produção daqueles filmes… achas que eles produzem também teorias quando verbalizam…através de textos, entrevistas, o que for… achas que eles transpõem as suas teorias como o Eisenstein fez…
FÁTIMA CHINITA – Sim, embora…eles nunca escreveram nenhum livro não é… da mesma maneira que o Eisenstein escreveu mas todos eles foram muito entrevistados ao longo das suas vidas e sempre falaram bastante do cinema. É evidente que David Lynch é um caso especial porque o David Lynch foge a respostas directas, sobretudo quando as pessoas teimam em perguntar-lhe o sentido dos filmes ou a explicação mas relativamente aos outros dois por exemplo, eles foram muito interrogados e portanto deram muitas entrevistas, nomeadamente a críticos dos Cahiers du Cinema cuja preocupação é mesmo o cerne cinematográfico, e eles responderam sempre de forma bastante directa com teorias que são próprias e que nunca escreveram em livro mas que possuem. E sim de facto eles têm um discurso bastante consistente sobre aquilo que é o cinema, portanto vê-se que a sua prática não é só intuitiva. Quer dizer, eles podem fazer os filmes de forma intuitiva mas os filmes fazem parte do ímpeto que eles têm e que também os leva a falar das coisas de uma maneira concreta.
EP – Eu às vezes sinto que só é possível a um cineasta ter uma teoria depois de fazer o filme… sobretudo se for meta-cinema…se houver essa preocupação auto-reflexiva…
FÁTIMA CHINITA – Mas eu concordo inteiramente contigo. Sabes porquê? Observa a obra do Jean-Luc Godard. Começou por fazer filmes modernos com principio meio e fim – “mas não necessariamente por essa ordem” – mas onde eu não consigo encontrar de acordo com aquilo que são as características que eu imputo ao meta-cinema ainda, características dessa natureza. Não considero por exemplo o À Bout De Souffle seja um filme meta-cinematográfico, não obstante ele mexer com os materiais e alterar bastante aquilo que era a linearidade habitual do cinema de Hollywood, ao qual, no entanto era fiel em termos de género porque se trata de um filme de gangsters, digamos assim.
De qualquer das maneiras, passado um certo tempo, após os primeiros filmes, o Godard começa já a fazer filmes que são na minha perspectiva meta-cinematográficos e temos filmes inclusive posteriormente como o Passion e tem vários, bastantes que são filmes ficcionais, no entanto completamente auto-reflexivos e mesmo meta-cinematográficos e depois vai desaguar mais tarde em filmes ensaísticos, como por exemplo o JLG Par JLG, ou seja o documentário que ele fez sobre si próprio em que aí já está verdadeiramente a questionar não só a natureza do cinema mas a natureza do seu cinema e fala na primeira pessoa. Isto é um percurso, é um percurso de obra, é um percurso de vida e claramente significa que ele foi evoluindo e portanto foi primeiro fazendo certos filmes, depois chegou a certas conclusões, evoluiu para uma outra fase, chegou a outras conclusões. Foi sempre evoluindo e isto sente-se noutros cineastas também porventura igualmente meta-cinematográficos mas que não têm quase um corpus inteiro dedicado a essa problemática, e nota-se que à medida que eles vão refinando o seu discurso cinematográfico e as suas práticas cinematográficas, eles vão cada vez mais pensando sobre aquilo que os atrai no cinema e nomeadamente é uma coisa importante que é… existe um autor que diz que perto da 10ª obra de cada cineasta instituído, eles tendem a fazer um filme que é uma espécie de súmula da sua praxis e esse filme é claramente meta-cinematográfico pelos meus padrões, e portanto é muito curioso que o Fellini, o Bergman…todos os grandes mestres …que nós consideramos como grandes mestres… tenham acabado por sentir essa necessidade. Claro que há excepções, nem todos os cineastas têm de o fazer mas aqueles que ao longo da sua obra tiveram mais tendência para abordar estas questões fazem-no.
EP – Tenho andado a pensar fazer um desses filmes, com o título “30 anos a virar frangos”… (gargalhada)
FÁTIMA CHINITA – Ok… (meio estupefacta)
EP- Mas o que é que tu achas…da relação entre a cinefilia do À Bout de Souffle e de filmes como JLG … quer dizer podes encarar como evolução mas também podes encarar como…
FÁTIMA CHINITA – Involução…
EP – Não, como uma oposição.
FÁTIMA CHINITA – Um retrocesso.
EP – Sim, pode ser uma busca às origens mas quase como se fossem antónimos, quase que senti isso.
FÁTIMA CHINITA – Eu não considero… porque, se pensares nos primeiros cinéfilos…os franceses de Paris nos anos 50, eles consumiam cinema americano portanto é inevitável que os géneros de cinema americano e as características do cinema americano fossem importantes. Eles tinham de começar por algum lado e começaram por aquilo que mais os influenciou naquele percurso, embora vissem obviamente outros autores, nomeadamente mudo, etc. Porque a Cinemateca francesa tinha um extenso manancial fílmico e eles viam muitas coisas mas aquele foi de facto o cinema que mais os influenciou na altura e depois acabaram por fazer outras experiências e acabaram por chegar a outras conclusões, porque naquele momento eles viam muito cinema mas viam tanto, tanto… que não sei se teriam tempo para reflectir sobre aquilo que viam. E por outro lado, se fores ler livros sobre a cinefilia aquilo que normalmente é referido é o momento cinéfilo, ou seja, é estar perante o filme em perfeita absorção, não com a história mas com os materiais e de repente haver alguma coisa no ecrã que te capta a atenção de tal forma que é hipnótica, em que tu ficas ali completamente absorvido, portanto isso é a experiência cinéfila que aqueles espectadores naquela altura acabavam por ter, e eu creio que só se consegue realmente passar desse momento de adesão aos materiais… quase uma experiência transcendental… para uma reflecção sobre os conteúdos quando tu já viste várias coisas diferentes e te consegues abstrair dos tais momentos concretos e começas a ver um filme no seu todo, e o facto de serem realizadores e de fazerem filmes dá-lhes essa perspectiva global que se calhar enquanto espectadores não conseguiam ter.
EP – Dentro dessa lógica de pensamento, se nós pensarmos na própria origem da palavra cinefilia, de amor ao cinema… então no meta-cinema há uma distanciação. …enquanto que no amor existe um envolvimento…
FÁTIMA CHINITA – Sim, sim. Há uma distância aparente mas por outro lado existe uma aproximação, são coisas diferentes. Quando tu estás a seguir um filme narrativo, estás imerso na história. Quando estás a seguir um filme com a paixão dos cinéfilos parisienses dos anos 50 estás imerso nas imagens, nos sons, naquilo que te vem do ecrã e de facto existe essa adesão absoluta ao filme, mas a momentos do filme ou à história do filme, e portanto é uma relação com o ecrã, acima de tudo é uma relação com o ecrã. E quando tu és meta-realizado…quando já estás a pensar mais estas características em termos de discurso autoral em filmes, tu estás a pensar para além daquilo que é o ecrã, estás a pensar numa sensação muito mais englobante. Estás eventualmente a pensar porque é que ficaste agarrado ao ecrã durante certos momentos, ou seja, é evidente que estes filmes sendo auto-reflexivos quebram com o ilusionismo tradicional e clássico, são por isso considerados anti-ilusionistas justamente porque não há ilusão, mas não haver ilusão não significa que não haja amor, ou seja, este amor faz-se de uma necessidade de reflectir sobre aquela matéria que é muito forte. Ou seja, o espectador do cinema comercial pode ir ao cinema, pode ver um filme, adorar, vai para casa… esqueceu. E não é por acaso que se pensa normalmente e as criticas assim o referem, que não se deve divulgar o final e depois surge aquela indicação: esta crítica contém spoilers. Mas qual é o problema de conter spoilers? Porque a questão está na experiência e não na história, da mesma maneira que se uma pessoa, um cinéfilo parisiense dos anos 50 for ao cinema e já souber de antemão qual é a experiência especial que vai ter naquela cena especial se calhar também já não vai ter da mesma maneira não é?
EP – Pois, talvez por isso é que eu odeio ler o que quer que seja antes de ver um filme. Quer dizer, é um bocado escatológico, é como antecipar todos os passos de uma actividade sexual, retira-lhe o elemento de surpresa e espontaneidade…
FÁTIMA CHINITA – É, mas eu se quiser…se tiver de precisar para responder exactamente aquilo que me perguntaste eu diria que em vez de amor pelo filme, os meta-autores, meta-realizadores, meta-espectadores questionam as premissas do cinema em global e portanto é um amor que é mais genérico, que é mais globalizado e que é sobre o cinema em si.
EP – E não sobre os filmes.
FÁTIMA CHINITA – E não sobre os filmes, embora as duas coisas não seja incompatíveis, atenção. É preciso que se diga.
EP – Sim, nos exemplos que apontaste há uma evolução nítida não é…
FÁTIMA CHINITA – Sim.
EP – Uma evolução nítida e uma necessidade de voltar ao inicio…
E que tipo de espanto é esse, para ti? É um espanto intelectual…como é que tu definirias?
FÁTIMA CHINITA – Quer dizer, a partir do momento em que eles formulam um discurso, tem que haver um lado intelectual e Jean-Luc Godard é de certeza absoluta bastante intelectual nas posições que toma e no modo como formula essa sua paixão, mas não tem necessariamente que ser sempre assim. O David Lynch pelo contrário, não se poderá considerar intelectual no tipo de discurso que tem perante os filmes, mas eu creio que é um misto das duas coisas. Há efectivamente um raciocínio que se tem sobre aquela matéria mas há também uma paixão e é algo que é indizível e que é interior, e que por ser indizível é muito da ordem do emocional. Creio que aquilo que leva os cineastas a abordarem estas questões não é um dia levantarem-se da cama e dizerem: ah, porque é que eu gosto de cinema? É algo que os absorve de tal forma e que os vai incrustando não é…no seu ser de uma forma que não é consciente até ao dia em que passa a ser, portanto é o misto das duas coisas verdadeiramente.
EP – Então e o que é que te interessa agora? Quais são os teus próximos passos…
FÁTIMA CHINITA – Os meus próximos passos são continuar na senda de uma coisa que eu abordei na minha tese de doutoramento e que também tem a ver com estas matérias. Até a uma certa altura estive mais posicionada para o lugar do espectador, mas eu creio cada vez mais que ele não pode ser separado do lugar do criador, até porque os espectadores muitos deles acabam por mais tarde vir a ser realizadores ou vivem frustrados porque não o são, e efectivamente os realizadores também começaram por ver filmes. A maior parte deles começa efectivamente por ver muito cinema e afirmam-no em entrevistas, portanto as duas coisas parece-me que estão de certa maneira interligadas, embora não haja obrigatoriedade nenhuma de que os espectadores tenham que passar a ser cineastas, podem permanecer sempre como espectadores e ser extraordinariamente felizes assim, do mesmo modo que os cineastas não têm de ser grandes espectadores e ter visto tudo e mais alguma coisa, pode haver um lado…
EP – O Lynch faz gala em ser um espectador medíocre…
FÁTIMA CHINITA – Ele faz gala mas lá está…não sei até que ponto é que aquilo é inteiramente verdade, porque ele frequentou uma escola de cinema e portanto deve ter visto lá filmes …aliás, apanhei uma entrevista dele em que ele referia alguns cineastas importantes portanto aquilo de facto é uma gala que ele faz mas que nunca saberemos até que ponto é inteiramente correcta.
Mas pode haver cineastas autodidactas porque não? o próprio Orson Wells não tinha visto muitas coisas, embora não fosse ignorante em cinema. Ele conhecia o Buñuel, ele conhecia os surrealistas mas não era um cinéfilo, no sentido em que por exemplo o Jean-Luc Godard o era, portanto eu creio que não havendo obrigatoriedade destas duas coisas se fundirem, em certa medida no campo do meta-cinema elas de certa maneira caminham uma para a outra. E portanto, eu queria analisar agora a questão do criador, sobretudo num tipo de filmes feito por alguns cineastas que são alegorias do criador mas na confluência com outras artes, ou seja, de que maneira é que por exemplo um Peter Greenaway, um Derek Jarman, um Syberberg, etc fazem filmes que sendo alegorias do criador e alguns casos até mesmo ensaios fílmicos sobre esta problemática, o fazem na confluência com outras artes, utilizando os recursos das outras artes e portanto em direcção a uma maior sinestesia que lá está… provavelmente está na experiência original e se calhar é parte daquilo que nós hoje em dia sentimos que se perde, por não haver a tal experiência da sala mas que pode ser recuperada neste género de filmes e alguns deles são antigos, são dos anos 70, portanto não é necessariamente uma corrente actual. O Jarman inclusive já morreu e portanto, estamos a falar de pessoas que têm esta preocupação e então, no fundo é uma espécie de nicho temático daquilo que já é o meu estudo…
EP – Pois, agora percebo por isso é que querias ver A Janela (Maryalva Mix) para esse teu estudo. A Janela tem momentos de animação de desenhos meus, bandas desenhadas rudimentares. Mas é por exemplo o contrário do Peter Greenaway, ele adora a alta arte e eu sirvo-me da baixa arte para falar de cinema, porque sempre entendi o cinema como um arte pop(ular).
FÁTIMA CHINITA – Mas eu não faço distinção, ou seja, o meta-cinema, se tu fores a ver, é transversal ao cinema todo. Tens os autores mais reputados de cada país e depois tens filmes assim um bocado para o trashy e que são completamente baixa cultura ou cultura popular mas que abordam as mesmas questões. Fazem-no de prismas diferentes e eu aí tento não valorizar, posso gostar mais de uns do que de outros mas tento não valorizar porque o que me interessa é o ímpeto que leva aquelas pessoas a irem de encontro aqueles produtos.
– E tu não achas que então…como é que tu vês o papel do inconsciente, ou pelo menos de um lado irracional da experiência de ver cinema que é fundamental…por exemplo, em relação ao Godard… ele, através da música clássica, manipula as emoções que de outra forma se tornariam filmes bastante mais áridos…
FÁTIMA CHINITA – Ele manipula as percepções porque ele tem sempre um objectivo que é justamente depurar e limpar os seus filmes da emoção tradicional do cinema clássico americano. E portanto normalmente ele faz cenas de amor em que toda a sensualidade habitual e tudo aquilo que é característico nos outros não existe, portanto cuidado com isso porque me parece que…
EP – Mas eu acho que o Godard pela banda sonora acrescenta sentidos ao filme, torna-o mais rico emocionalmente, sem dúvida. E de certa forma como regressa a essa cinefilia hollywoodesca… quase todos os compositores de Hollywood vão beber à música clássica e parece-me que ele fugiu a quase tudo o que é emocionalmente convencional pela montagem mas depois pelo som ele não resiste a criar determinadas emoções muito fortes, mesmo que dissonantes.
FÁTIMA CHINITA – Eu percebo o que queres dizer mas discordo, porque…repara que ele gosta de utilizar o som e a imagem não síncronos, portanto quando utiliza a música muitas vezes, ele não a utiliza em conjugação com a imagem e para que houvesse aí a tal emoção típica do cinema clássico americano, estas duas coisas teriam que estar em sintonia e ele justamente joga de facto com o som e joga com a música clássica mas não conjugando com imagens, portanto o sentido e o valor dessa utilização não é a mesma.
EP – Sim, não estou a dizer que seja a mesma experiência de ver um filme de Hollywood claro. Mas não deixa de recorrer a elementos de Hollywood ainda hoje nos seus filmes mais “conceptuais”. Digo isto porque eu, enquanto espectador, sinto que vou para locais mais longínquos através do som…
Uma última pergunta. O que que é que te espanta e atrai no cinema de hoje?
FÁTIMA CHINITA – Eu vou dizer o que é que não me atrai, é mais fácil. Não me atrai a utilização desgarrada do 3D como mero efeito chamativo de espectadores. Certos filmes nomeadamente épicos que utilizam bastante o 3D fazem-no como mero fogo-de-artifício e atenção que eu não tenho nada contra filmes que façam a utilização da técnica.
EP – Achas mesmo que eles fazem? Eu acho que fazem tão pouco uso do 3D.
FÁTIMA CHINITA – Alguns…atenção eu não…
EP – Não, eu por acaso se fizesse uma crítica era exactamente contrária. Era que eles pensam totalmente em 2D e depois como é em 3D, volta e meia dizem assim: ‘ok, vamos agora fazer só aqui uma coisa só para mostrar que isto é em 3D’ mas…
FÁTIMA CHINITA – Mas há um problema, repara. Quando tu tens um filme cheio de acção com a câmara sempre em movimento, cortes muito rápidos e depois ainda pões 3D na imagem aquilo boicota a experiência, ou seja, aquilo é um excesso de sensações o que significa que vais sair atordoado da sala, sem ter verdadeiramente tido capacidade de ver o filme porque são tantas imagens tão rápidas e com tantas sensações em simultâneo que me parece que aquilo acaba por ser contraproducente para o filme que está a ser contado. Há certos filmes que tu vês em 2D e vês em 3D e são completamente diferentes. Por exemplo o Avatar: o Avatar não pode ser em 2D, não obstante obviamente do DVD ser em 2D, mas não pode porquê? Porque aquilo era uma concepção, aquilo tinha uma dramaturgia que implicava efectivamente aquela dimensão de imagem com aquele formato, com aquelas características tridimensionais. Quando tu fazes isso noutros filmes e enches os filmes de acção com aquela perspectiva, pronto que o 3D consegue acrescentar tu não estás a favorecer o filme, estás a prejudicar o filme. Portanto eu…até pode haver filmes que são interessantes e que eu depois de momento não as vou ver…
EP-…Eu acho que eles pensam mais em 2D.
FÁTIMA CHINITA – Mas eu não estou a falar do Matrix por exemplo, coisas assim que aliás é em 2D.
EP – Não não, eu estou a dizer que eles pensam mais… eles pensam mais em 2D, para já por motivos também comerciais, porque eles têm de ter uma versão 2D que funcione tão bem como a do 3D e muitas salas não têm 3D. E portanto aquilo que eu sinto é exactamente que…eu por exemplo quando estava a montar o Cinesapiens (que é feito a gozar… porque gozei nos dois sentidos da palavra com esses efeitos) sentia sempre que se visse em 2D, o filme era muito lento…exactamente porque tinha de dar tempo a essa dramaturgia, e que o espectador adulto ainda não está preparado para o 3D. Não podia estar a fazer o tipo de montagem que fiz em A Janela (Maryalva Mix) por exemplo, que tem mais planos que o Natural Born Killers... Sinto que a linguagem 3D não está explorada, não teve ainda uma “nova vaga”…
FÁTIMA CHINITA – Outro exemplo, o Avatar como foi um caso típico não é… até houve equipamento desenvolvido de propósito para o filme. É um bom exemplo mas já está muito referido. Outro: o Hugo do Martin Scorsese que nunca tinha feito nenhum filme em 3D e que de repente decidiu fazer aquele. Terá sido por razões comerciais, as pessoas pensaram que sim, mas eu tendo visto o filme nas duas versões, entendo claramente que não foi uma questão comercial, ou seja, claramente o Hugo que é um filme que se vê lindamente em 2D, tem e ganha uma dimensão adicional que é de natureza dramatúrgica, se tivermos em conta que é também um tributo ao cinema do Méliès, então ganha aqueles contornos todos que o cinema do Méliès tinha e que na altura não podiam ser feitos os filmes em três dimensões mas que se existissem talvez ele tivesse utilizado essa capacidade técnica e quando o Martin Scorsese vai fazer o filme em 3D, ele está a trazer dramaturgicamente para dentro do filme outras conotações e uma outra riqueza, ou seja, ele não boicota a história porque a utilização que faz do 3D não nos impede de acompanhar a narrativa e de estar a gostar daquilo que vemos e a perceber completamente o que visionamos, tanto que o filme é perfeitamente visionável em 2D mas essa dimensão mágica e agora utilizo o termo com total propriedade, só existe porque o 3D está lá e porque reforça a personagem e toda a ilusão que envolve o Méliès claramente, portanto aí temos o exemplo de uma utilização inteligente do 3D e que eu claramente considerei muito muito bem feita. Portanto, eu não tenho problemas nenhuns com a tecnologia. Eu tenho problemas com a tecnologia quando ela é utilizada ao desbarato e por razões exclusivamente comerciais e acaba por ser contraproducente contra o filme que é visto não é…Quando não temos tempo de ver o filme e que o 3D inclusive vai prejudicar o nosso visionamento, então eu sou contra. Mas é nessas circunstancias e também não sou contra os efeitos especiais desde que eles sejam requeridos pelo filme. Gosto muito da saga Matrix dentro do género…não poderia ser outra coisa se não fosse aquilo não é…
EP- Claro. Melhor para falar de Platão que o Matrix é difícil… (sorrisos) Mas penso que o jovem espectador de 3D não terá os mesmos problemas de leitura de um filme hiper-movimentado do que um espectador 3D adulto…Temos de esperar pelos espectadores mutantes…
O que me faz lembrar um livro sobre a rodagem de Videodrome em que o autor confessava a Cronenberg que se tinha refugiado no home video porque apenas no ecrã do televisor conseguia aguentar o ritmo e o frenesim sonoro dos filmes contemporâneos … ao que este respondeu que ele estava a transformar-se num espectador mutante*. Parece-me que se trata de uma mutação a níveis: uma deslocação da zona de visionamento colectiva para uma área de visionamento caseiro, e por outro lado podemos encarar como uma mutação involutiva, a que se sujeitam os espectadores mais velhos. Enquanto que os espectadores mais jovens se vão habituando à montagem frenética e fragmentada dos filme de acção, os mais velhos, precisam de um ecrã mais pequeno para evitarem a sensação de bombardeamento visual e sónico.
Em 1995, quando comecei a utilizar nos meus cine-diários a função 5 fotogramas duma sony dv, isto é quando comecei a filmar apenas planos de 0,2 segundos, notei em mim enquanto espectador-criador uma alteração de percepção. Ao fim de um dia de rodagens revia o material e conseguia identificar as acções de cada um daqueles planos, o que era muito mais difícil para aqueles que estavam a ver aquelas imagens pela primeira vez. Era como se tivesse uma percepção expandida a do filme, e durante os 10 minutos da projecção eu vivesse numa dimensão temporalmente alargada, em que aqueles 10 minutos eram aumentados de acordo com as minhas cine-memórias, isto é, cada acontecimento que eu filmara tinha uma duração que tinha sido comprimida numa série de planos de 0,2 segundos e durante a projecção dava-se um processo de descompressão no meu cérebro. Noutros casos, depois de um dia a filmar um espectáculo apenas planos com 1/5 de segundo, rebobinava a cassete e fazia sessões de projecção pouco depois de o evento terminar. Será que os espectadores desse espectáculo teriam a mesma percepção expandida dos planos?
* “I can recall a conversation with Cronenberg, around this time, in which I confessed to going to fewer and fewer theatrical screenings since the advent of home video, because I found the loudness of the theatrical experience unpleasant and fast editing more difficult to absorb on larger canvas. “You’re mutating, Tim,” he observed.” (Lucas, Tim Videodrome: Studies in the Horror Film. United States, Centipede Press 2008)
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