RELATÓRIOS D’O ESPECTADOR ESPANTADO 9872-EL15 ©EDGAR PÊRAEDGAR PÊRA – O que é que é para si o espanto?
EDUARDO LOURENÇO – Eu não tenho nenhuma concepção particular do espanto. O espanto é uma experiência humana, talvez fundamental, que é o facto de um aspecto a que nós chamamos natural, ou da natureza, se revelar como pouco legível. E que produz em quem o observa uma espécie de desequilíbrio em relação à sua perspectiva habitual. O espanto, conceptualmente falando, foi tematizado logo no início da nossa cultura ocidental propriamente dita que é a grega, aquilo que é a invenção principal dessa cultura que é a Filosofia – é a filha do espanto.O filósofo é aquele que se interroga a partir das mensagens que lhe vêm do exterior. O espanto pode ser de dois géneros… a experiência de um deslumbramento, uma ofuscação considerada como positiva, nesse caso o espanto é a experiência fundamental da Humanidade porque basta abrir os olhos para se ficar confrontado com qualquer coisa que é essencial para nós todos, que é a realidade que nos cerca. Portanto o espanto é, digamos, o conceito mais filosófico (que nós… que), é a raiz de toda a Filosofia – que é viver da interrogação, que nós podemos ter sobre tudo o quanto nos cerca, quer exterior quer interior.
No Cinema, o espanto está mais relacionado com aquela espécie de filmes a que nós chamamos “fantásticos”. Eu lembro-me, por exemplo, do Nosferatu que nos põe em contacto com aquilo a que nós chamamos “uma versão do sobrenatural”, um sobrenatural não-codificado entre o deslumbramento e o horror. De facto, o Cinema, uma parte do Cinema, vive em função dessa capacidade de espantar. Nós vamos ao cinema para viver uma outra vida, para ter um outro tipo de experiência. Experiências gratificantes, deslumbrantes, (um filme do Fred Astaire é um espanto) ou horrorosas, encarnadas em tempos por personagens como Boris Karloff… e hoje esses filmes que põem em cena os vampiros, mortos vivos, etc., que dizem respeito àqueles fantasmas que nos assombram de uma maneira consciente ou inconsciente, no fundo são variações, são aquilo que é mais essencial na condição humana que é a sua própria finitude e o seu confronto com o fim possível, e sobretudo sempre inevitável que é o morrer. Portanto, o espanto é uma maneira de descobrirmos, de uma maneira ou de outra, que temos um destino realmente marcado.
EP – O que eu acho interessante na a palavra portuguesa, espanto, é que, para além de ter essa raiz grega do THAUMA… de admiração e perplexidade que dá origem à filosofia, também tem uma origem latina – EXPAVENTARE, de assustar e afastar, que por sua vez também dá origem ao “espantalho”. Portanto, esse duplo significado que o professor acabou de referir é um pouco essa conjugação destes dois conceitos…
EDUARDO LOURENÇO – O espantalho – eu que sou de uma aldeia – os espantalhos eram aquela espécie de bonecos que se punham nos campos para afugentar os inimigos dos lavradores.
EP – Afugentar, ou seja…espantar!
EDUARDO LOURENÇO – Espantar! Para que eles confundissem essa… para que os pássaros confundissem uma imitação com a realidade. E portanto, se afugentassem e não fossem nocivos. Portanto, isso seria o espantalho. O espantalho tomou uma conotação muito negativa, o espantalho é qualquer coisa que é uma desordem, uma desordem a vários níveis mais ou menos nociva. Para meter medo! Propriamente dito.
EP – Mas acha que essa dupla origem da palavra dá algo de diferente à palavra portuguesa “Espanto”? Esta dupla origem de afastar, portanto, a origem latina por um lado e por outro…
EDUARDO LOURENÇO – Tudo isso eu penso que são formas de exorcismo que nós temos. Um exorcismo muito antigo, muito arcaico. Eu penso que essa imitação daquilo que é difícil de ser aceitável como uma coisa positiva, é uma maneira de nos libertarmos virtualmente de uma ameaça latente, que é sempre aquilo que caracteriza a nossa maneira de ser no mundo.
EP – Lembra-se quando foi a primeira vez que se espantou, quando foi ver um filme? Ou do seu primeiro filme…o primeiro espanto…
EDUARDO LOURENÇO – Bom, o primeiro filme foi o espanto mais positivo possível. Porque era um filme, (eu acho que tinha aí uns 10 anos), um filme de cowboys. Bom, e era uma coisa estranhíssima porque não havia, naquela altura, a tradição em relação a vermos filmes desse género. E que depois se tornaram os filmes nos quais a juventude daquela época se reconheceu antes de nos confrontarmos com um cinema já com outras pretensões – os filmes mudos do Cinema alemão, os filmes do Charlot, etc… Mas sem esse espanto não há o há o rir, não é? esse é o contrato não é?
O rir é a negação do espanto, porque é o espanto hiper-positivo. Nós rindo, libertamo-nos da função de ameaça que nós reclamamos para aquilo que nos espanta, quer dizer: para aquilo nos aterroriza. Portanto, há um espanto positivo e há um espanto negativo.
Agora, o espanto verdadeiro é quando nós estamos diante de uma obra que nos espanta porque nos ultrapassa, porque é qualquer coisa que tem já uma carga de maravilhoso, de sublimante… e que são os grandes filmes. O espanto, nesse capitulo da ordem do Cinema, para mim são os grandes filmes clássicos da época clássica americana, mas igualmente o Cinema europeu: Bergman, Rossellini, Fellini, etc. São o espanto maravilhoso, é a maravilha e não propriamente o temor que está realmente a ser vivido por quem olha.
EP – Só mais uma perguntinha, sei que está muito ocupado… O que é que acha da posição de certos filósofos, como a Maria Zambrano, que dizem que a Filosofia é exactamente o corte radical com o espanto? Ou seja, que os filósofos perdem a capacidade de se espantar ao racionalizarem.
EDUARDO LOURENÇO – Não, os filósofos talvez a percam com o exercício de querer tornar inteligível aquilo que aparece primeiramente como indecifrável, ou pouco decifrável. Portanto o filósofo é aquele que é interrogado, ou que desperta para qualquer coisa que até então era vivida como um coisa natural, inclusive, tudo o quanto nos cerca. Portanto, espantar-se é interrogar, e tentar perceber porque é que nós nos encontramos obrigados a responder àquilo que provavelmente nunca terá uma resposta cabal. E isso é propriamente o exercício da Filosofia.
EP – E acha que o Cinema…
EDUARDO LOURENÇO – …é uma actividade filosófica em imagens!
EP – O Godard disse recentemente que a Europa toda devia pagar aos gregos por usar a preposição LOGO, deviam pagar direitos de autor.
EDUARDO LOURENÇO – (Risos) É verdade! Mas pelos vistos ninguém quer pagar à Grécia actual essa conta não é? Não se pode pagar…
EP – Seria uma conta muito grande! (Risos)
EDUARDO LOURENÇO – … a nossa contribuição! (Risos)Fotos 3D Anaglíficas e texto do livro/filme O Espectador Espantado de Edgar Pêra Produção Bando À Parte.