FLASHFOWARD: KINO-DIÁRIO 3D ESPECTADOR ESPANTADO – 10 Fevereiro 2016
“Nada invalida nada, porque seja qual o caminho acaba sempre bruscamente coberto de ervas”*. (*João Miguel Fernandes Jorge “Porquê pintores em tempos de aflição?” in “A Gravata Ensanguentada”)
Convém começar pelo princípio e para isso teremos de recuar no tempo, até `a pré-história desta série de reflexões cujo título genérico é O Espectador Espantado, ou seja muito antes de ter descoberto o “verdadeiro” tema da minha tese. Antes de mais convém esclarecer que, tratando-se de uma tese de doutoramento na área do cinema o seu resultado traduz-se em dois trabalhos interdependentes na área fílmica e escrita. Tanto as imagens como os textos são objectos de reflexão artística e teórica. O Espectador Espantado são filmes e textos que se complementam. No seu conjunto, formam um todo.
Procurei com esta abordagem aproveitar, por um lado, os saberes acumulados ao longo de 30 anos de prática cinematográfica e por outro, a investigação específica desta tese de doutoramento. A tese, por consequência, só poderia ser um trabalho simultaneamente artístico e teórico, uma reflexão ancorada na pesquisa efectuada ao longo dos últimos 9 anos.
Confesso que no início tive a ambição de escrever um texto “puramente” académico, mas quanto mais teorias lia, mais lacunas detectava numa área: a relação entre imagem e texto nas práticas académicas é muito incipiente, pelo que a mais valia desta tese estará justamente em recorrer à minha experiência fílmica para estabelecer elos entre teorias e práticas. Esta tese é também o relato da experiência de um espectador, e de um espectador que evolui de espectador-espectador a espectador-criador.
É claro que um texto sobre cinema escrito por um cineasta há-de diferir de um texto de um teórico sem experiência cinematográfica. Nagisa Oshima alerta para os perigos da teorização sem um ponto de vista explícito: primeiro há que distinguir aquele que escreve com conhecimento pessoal do processo de realização de um filme e o crítico que escreve sem esse conhecimento. O cineasta não queria com isso excluir os que que não sabem como se faz um filme, mas que estes definissem o ponto de vista a partir do qual estão a avaliar o filme. Oshima escrevia assim em 1967: (ainda falta transcrever citação “Obviously… até the fact that they do not. citação pg 136).
Podemos comparar a essa classe de teóricos que escrevem com o kine-know-how, (isto é, a partir da sua cine-praxis) aos romancistas que escrevem críticas literárias. A segunda classe de teóricos corresponde aos críticos que nunca fizeram outra coisa se não escrever sobre cinema.
Os pontos de vista de ambos são radicalmente diferentes, ambos válidos consoante o ponto de vista que se pretende desenvolver. Com uma ressalva: os críticos literários utilizam o mesmo media sobre o qual escreve: escrevem textos sobre textos, prática e teoria confundem-se. Porque um crítico de literatura é sempre um escritor, mas um crítico de cinema não é necessariamente um cineasta. Haverão críticos, cujos textos serão, em si mesmos, uma proposta de cinema – como os críticos da Nouvelle Vague por exemplo. Mas esses proto-cineastas são a excepção e não a regra – apesar de ser cada vez mais fácil realizar um filme raramente os críticos e teóricos reflectem sobre cinema sob a forma cinematográfica. A distância mantem-se, o que traz vantagens e desvantagens.
Esta tese foi portanto uma forma de fazer um reboot e ao mesmo tempo uma viagem ao passado, fazendo depois o percurso em flashforward para o presente, de espectador-estudante a criador auto-reflexivo. Para isso recorro neste livro a imagens dos filmes que fizeram parte desta investigação, com o intuito de criar um universo visual onde as minhas reflexões teóricas se pudessem encaixa na minha praxis . Parece-me que mais importante do que reciclar os milhares de páginas que foram lidas e estudadas, é dar a ver e ouvir e ler imagens sons e textos em harmonia com o universo cinematográfico e em relação directa com as investigações académicas.
Partindo de leituras, visionamentos, entrevistas inéditas e experiências visuais como material de trabalho, a linguagem utilizada no livro/filme é simultaneamente de pendor artístico e (auto e hetero)reflexivo. Num livro tudo é imagem, tanto as fotografias como o texto e essa característica foi realçada neste projecto. Num filme podemos acrescentar a dimensão escrita bem como a sonora, que não só viaja no tempo como no espaço. Funcionam como um raio x das investigações efectuadas.
As entrevistas realizadas e as citações funcionam como um diálogo, que se estende ao longo do filme, estabelecendo um percurso dialético de ideias.
Optar por uma só teoria explicativa do acto/condição de ver cinema (o intraduzido spectatorship) parece-me redutor de toda esta pesquisa. O mais importante estará sempre na viagem. Como escreveu Enrique Vila-Matas “crer numa só teoria seria sempre uma coisa totalmente suicida e, além do mais, ligeiramente estúpida, porque, para um tímido como eu, não podia existir nada tão irresponsável como pensar que era precisamente a nossa teoria a válida.” Ou como afirmou Alfred Jim Bayer, filósofo e professor de Lógica: “São estes os meus princípios. E se não lhes agradam… Pois bem tenho outros…”* (*citado por Liz Themerson no prólogo de Perder Teorias)
Já Goethe afirmava que “a Teoria em si e por si, não serve para nada a não ser na medida em que nos faz acreditar na conexão dos fenómenos”*. (*Máximas e Reflexões pg 121). Ou ainda como escreveu Bill Nichols “ são as teorias que têm de responder aos filmes e não viceversa:
Films do not answer to theory, but theory must answer to film – if it is to be more than idle speculation.
( Representing Reality Issues and Concepts in Documentary Bill Nichols Indiana University Press 1991 pg xiv)
Encontrar a teoria ideal não me parece ser a solução, mas é na busca das ferramentas teóricas mais adequadas que me parece que está o interesse desta investigação. Como avisa o filósofo Vincent Descombes
« Une des erreurs des débutants de philosophie, c’est de croire qu’il faut donner des réponses impressionnantes à des sujets de dissertation. Or il est plus philosophique de décortiquer le problème posé que de trouver des réponses compliqués ou de citer toutes les réponses des philosophes. Le chemin vers la réponse plutôt que la réponse forcement provisoire, voilà la philosophie. » (Descombes, Vincent revista Philosophie #28, pg 62 data. ? )
… Se cristalizasse este texto numa estrutura de capítulos temáticos rígidos perder-se-ia o sentido e a evolução desta pesquisa, e em vez de uma caminhada recheada de “peripécias” teórico-práticas teríamos um mapa plano, sem irregularidades e sem sobressaltos. Como referiu Philippe Codognet: a propósito dos mundos virtuais,
“we are moving away from the metaphor of the map to that of the path, from the third-person point of view (“God’s Eye) to the first-person point of view.” (Philippe Codognet “Artificial Nature and Natural Artifice”) (pg 136 Isaacs).
Em vez de querer assumir que se sabe tudo, e de cima dos meus conhecimentos anoto um mapa, viajo e mostro o meu caminho, um percurso auto-reflexivo….
Isto não quer dizer que não hajam fronteiras nesses mapas, mas são fronteiras elásticas e em mutação constante, tal como as pessoas e as instituições (neste caso a instituição cinema e o indivíduo espectador).
Julian Baggini escreveu, a propósito das teorias de Timothy Williamson, que ” there are in fact real boundaries between heaps and non-heaps, tall and short people and so forth. The vagueness turns out to be “epistemic”: that is to say, we cannot know where these borders are. Nevertheless, they are real. (The Philosopher’s magazine 2009 Timothy Williamson interview by Julian Baggini).
Fiz das vozes dos autores consultados a minha própria voz, interligando de frases e ideias, como quem monta um filme. Não poderia deixar de ser um filme baseado no meu percurso, uma viagem feita com a bagagem conceptual dos trabalhos anteriores.
Por outro lado, a forma de apresentação destes textos, reflecte a dispersão e fragmentação do cinema hoje, que se deslocou das salas para os micro-computadores (telemóveis, tabletes, etc). Esse regresso dos modos de ver cinema ao kine-atraccionismo dos seus primórdios reflecte-se por sua vez na organização destes textos, que funcionam como atracões.
Quis escrever (e filmar) do ponto de vista do espectador contemporâneo.
As teorias do espectador estão na ordem do dia: nos filmes, nos festivais, nas declarações dos cineastas, nos textos académicos. As teorias do espectador colonizam territórios de sentidos, obrigando o leitor a fazer opções. O seu objectivo é fixar a sua teoria numa história das ideias, como se a História avançasse num só sentido.
As teorias, em regra, buscam sentidos únicos. Muitas das vezes analisam isoladamente a linguagem de um filme, sem considerar os múltiplos espectadores, ou analisam o espectador sem referir o contexto. Integrando as múltiplas teorias do espectador, ferramentas indispensáveis para uma análise contextualizada, este filme tem como objectivo trilhar uma ficção de ideias, filmada em salas de cinema. Os estudos sobre o Espectador são raros, e este livro-filme surge como uma das respostas possíveis a esse vazio. O ESPECTADOR ESPANTADO (do cinema mudo ao Holo-cinema) pretende preencher essa lacuna no conhecimento, criada pelo advento de um novo tipo de cinema e um novo tipo de espectador.
Só durante a pesquisa sobre o acto de ver cinema, me dei conta da importância do espanto e da relação entre novidade e estranheza. E só muito mais tarde, me apercebi da importância das teorias do “cinema das atracções” e do “cine-atraccionismo” na formulação de hipóteses de enquadramento do(s) modo(s) de exibição do(s) cinema(s) contemporâneo(s) quer na contextualização da minha praxis cinematográfica.
O caminho a percorrer é complexo, intertextual e hipertextual, tortuoso… Assim, mais do que narrar/citar uma história das teorias do espectador, pretende-se criar um itinerário anotado, na primeira pessoa, através do qual o leitor possa navegar. Uma viagem pelo(s) estados de espírito do(s) filme(s) e do(s)espectador(es). Contextualizados pelas teorias, mas autónomo destas. Isto é, partindo de observações e deduções, alicerçadas na experiência fílmica e nos dados teóricos recolhidos. São textos de um espectador-criador que manuseou os conceitos que lhe surgiram pelo caminho. Ideias-coordenadas que se ajustaram à sua viagem (e vice-versa). E à viagem do leitor, espectador de palavras e imagens fixas, e do espectador de cinema, leitor de sons e imagens em movimento.
Cinema é dar a ver (e ouvir). O ESPECTADOR ESPANTADO revelará a interacção entre o que é visto e aquele que vê. O espectáculo não existe sem espectador, mas o espectador faz parte do espectáculo. Aprofundar os conhecimentos da relação cinema-espectador é crucial quer para o estudioso, quer para o criador. Com este filme propõe-se a produção dum filme em que, mais do que narrar/citar uma história das teorias do espectador, desenhar-se-á um mapa (em constante evolução) dos “estados de espírito” dos filmes e dos espectadores. Filmes e espectadores (re) filmados e repensados.
NOTA: Todas as fotografias podem ser vistas em 3D com óculos anaglíficos (azuis e vermelhos) © Edgar Pêra Produção Bando À Parte.