KINO-DIÁRIO O ESPECTADOR ESPANTADO – 13 Agosto de 2013
Parece-me que quando se pretende reflectir sobre um filme é fundamen.tal previamente relatar as experiências desse particular espectador teórico antes durante e após a sessão de visionamento. Qualquer análise de um filme, para ser completa tem de incluir o seu observador, isto é tem de se referir a uma situação específica de visionamento.
Numa crítica de Pauline Kael* a um filme do Vittorio de Sica, esta destemida e desempoeirada (e polémica) crítica confessa que tinha ido ao cinema depois de uma discussão de ruptura. Kael chorou duplamente nessa sessão, libertou lágrimas de dois tipos: uma lágrima resultante componente melodramática do filme a situação emocional e outra resultante da sua própria experiência de ruptura. Não é necessário ter essa experiência para chorar num filme, mas a empatia criada no espectador depende também das suas experiências prévias.
Pauline Kael não teve medo de revelar até que ponto a sua crítica estava dependente do estado de espírito com que entrou para a sala. Kael assume que uma crítica é um acto dotado de uma grande subjectividade. Pelo que qualquer teoria que assente numa avaliação estética é também um acto de subjectividade. E portanto muito distante da ideia que nós temos de ciência. Como afirmou Raymond Bellour em Le Corps du Cinéma as teorias de cinema surgem dos amores e desamores* de cada um: “não há imparcialidade no amor dos filmes” (pg. 18 Le Corps du Cinéma – hypnoses, émotions, animalités. P.O.L. 2009
O facto de não existir uma ciência do cinema não quer dizer que não se possam avaliar filmes. Mas sem a contextualização devida corremos o risco de ler numa análise mais sobre o espectador do que sobre o filme. Mesmo quando um teórico se coibe de fazer juizos de valor (do género filme X é uma obra prima o filme Y é um aborto .)
Bellour realça a importância que a experiência cinéfila tem no visionamento de dado filme. Divide entre dois tipos de corpo no cinema, o corpo do filme e o corpo do espectador:
” Il y’a deux corps au cinéma, sans cesse ployant l’un sous l’autre pour mieux sembler de faire q’un. Le corps des films, de tout les films qui un par un, plan par pal, le composent et décomposent. Le corps du spectateur, que sa vision de chaque film affecte, comme l’indice d’un théâtre de mémoire aux proportions immodérés, à travers chaque film et en miroir de tous les films. Le corps du cinéma est le lieu virtuel de leur conjonction. “
(pg. 16 ibidem)
Bellour acrescenta que para se reflectir sobre cinema temos de ter em consideração esses corpos e afectos, e se pretendemos criar uma ordem e um pensamento, teremos sempre necessariamente de regressar a uma primeira vez, em que a surpresa e o choque são determinantes. E cita Serge Daney e o que é para ele uma regra fundamental tanto para o espectador, como para o crítico e o teórico:
” rester fidèle à la memoire de ce qui nous a un jour transi.”
Eterno retorno ao primeiro espanto.
Nietzsche defende que, caso se ame a vida e se frua autenticamente dela, a ideia do Eterno Retorno é como uma benção. O filósofo argumenta ainda que este pensamento supera todas as religiões e metafísicas por manter o centro de gravidade ética no real e não buscar justificativas além-mundo para valorizar a existência. Ela justifica-se por si mesma.
Este regresso à primeira vez de Daney pode ser isto como um regresso ao amor incondicionaal pelo cinema, causado pelo espanto da sua existência.
Pauline Kael tinha uma metodologia que de alguma forma remete para a frase de Daney. Para Kael um filme só deveria ser visto uma só vez, isto é nunca deveria ser submetido a um minucioso exame, não deveria ser dissecado repetidas vezes. Apenas a primeira impressão contava. Kael não pretendia com esta atitude renegar o trabalho académico, mas esta era sua praxis. Criara uma cine-persona que vivia exclusivamente dessas primeiras vezes.
NOTA: as fotografias podem ser vistas em 3D com óculos anaglíficos (azuis e vermelhos) © Edgar Pêra Produção Bando À Parte)